6 de mar. de 2009

Poesia na Loucura


Mariazinha* é paciente do Ambulatório de Saúde Mental onde sou psicóloga.
Tenho aprendido com minha história e com a maturidade (espero que crescente, pois construída a custo de muita luta) a prestar atenção aos acontecimentos corriqueiros que, não se enganem!, são os que verdadeiramente dão o significado para a vida (já disse Guimarães Rosa que "felicidade se acha é em horinhas de descuido").
E Mariazinha proporcionou-me hoje um singelo e inesquecível instante de poesia + epifania (esses momentos raros em que a gente consegue ver a Vida e sua Beleza com uma claridade óbvia...).
Apesar de ser um centro ambulatorial, ao qual os pacientes comparecem normalmente em horários agendados, Mariazinha tem o costume de fazer-nos "visitas" frequentes e inesperadas. Aparece com seu vira-lata de olhar tristonho, os pés descalços e cheiro de banho "tomado há alguns dias".
Mesmo não sendo minha paciente direta, sua história e "figura" sempre me chamaram a atenção. Portadora de esquizofrenia, os limites entre realidade e fantasia são bastante tênues em Mariazinha.
No seu andar acelerado pelos corredores e salas do Ambulatório, Mariazinha se interte com alguma conversa (seja com outros pacientes, seja com os funcionários). Algumas vezes ela canta.
Algumas vezes ela CANTA!...
Hoje a ouvi cantando para uma das nossas secretárias, que estava recosta ao banco, se refrescando do calor insuportável.
Parei para prestar atenção naquela cena... e fui intensamente tocada.
Deitada no chão, junto com seu vira-lata de olhar tristonho, os pés descalços e cheiro de banho "tomado há alguns dias", Mariazinha cantava para alguém. Cantava com as feições meigas e compenetradas, como que querendo consolar.
Cantava uma canção piegas ("piegas" até então para mim, mas diferente a partir de agora...) que diz:

"Coração, diz pra mim por que é que eu fico sempre desse jeito? Coração, não faz assim... Você se apaixona e a dor é no meu peito... ... E agora o que é que eu faço pra esquecer tanta doçura? Isso ainda vai virar loucura! Não é justo entrar na minha vida. Não é certo não deixar saída. Não é, não..."

Mariazinha cantava, quase que profeticamente, que o amor "ainda vai virar loucura"...
Eu, sozinha, sorri profundamente. Na boca e coração. Enquanto ouvia a voz rouca e desafinada de Mariazinha se espalhar pelas salas frias e feias do ambulatório, eu fui feliz. Mariazinha fez felicidade.


* Nome fictício

T. Prates

6 comentários:

Anônimo disse...

Nossa, Tatá, que lindo!
Sua escrita continua inconfundível!
Aparece aqui uma hora. Beijão!

marcinha disse...

Talita use seu blog para falar mais da reforma psiquiátrica e o seu dia dia no ambulatório, achei seu texto muito poético. Como nos diz Nietszche: "Há uma loucura no amor mas há uma razão na loucura"
Bjos
Marcinha

Unknown disse...

Muito lindo, amiga!!!

iILÓGICO disse...

há, na solidão do louco, um lugar que às vezes vamos, e, eles, os loucos ficam.
a própria solidão. ela acalma, transforma. para o transbordar excessos e consentimentos. congela o tempo, repele o ruim, enlouquece os outros. os que estão de fora.

bju-te
Paz d'Ele em sua vida!

Anônimo disse...

ler todo o blog, muito bom

eu disse...

veria nisso providência.

 
;