
Mariazinha* é paciente do Ambulatório de Saúde Mental onde sou psicóloga.
Tenho aprendido com minha história e com a maturidade (espero que crescente, pois construída a custo de muita luta) a prestar atenção aos acontecimentos corriqueiros que, não se enganem!, são os que verdadeiramente dão o significado para a vida (já disse Guimarães Rosa que "felicidade se acha é em horinhas de descuido").
E Mariazinha proporcionou-me hoje um singelo e inesquecível instante de poesia + epifania (esses momentos raros em que a gente consegue ver a Vida e sua Beleza com uma claridade óbvia...).
Apesar de ser um centro ambulatorial, ao qual os pacientes comparecem normalmente em horários agendados, Mariazinha tem o costume de fazer-nos "visitas" frequentes e inesperadas. Aparece com seu vira-lata de olhar tristonho, os pés descalços e cheiro de banho "tomado há alguns dias".
Mesmo não sendo minha paciente direta, sua história e "figura" sempre me chamaram a atenção. Portadora de esquizofrenia, os limites entre realidade e fantasia são bastante tênues em Mariazinha.
No seu andar acelerado pelos corredores e salas do Ambulatório, Mariazinha se interte com alguma conversa (seja com outros pacientes, seja com os funcionários). Algumas vezes ela canta.
Algumas vezes ela CANTA!...
Hoje a ouvi cantando para uma das nossas secretárias, que estava recosta ao banco, se refrescando do calor insuportável.
Parei para prestar atenção naquela cena... e fui intensamente tocada.
Deitada no chão, junto com seu vira-lata de olhar tristonho, os pés descalços e cheiro de banho "tomado há alguns dias", Mariazinha cantava para alguém. Cantava com as feições meigas e compenetradas, como que querendo consolar.
Cantava uma canção piegas ("piegas" até então para mim, mas diferente a partir de agora...) que diz:
"Coração, diz pra mim por que é que eu fico sempre desse jeito? Coração, não faz assim... Você se apaixona e a dor é no meu peito... ... E agora o que é que eu faço pra esquecer tanta doçura? Isso ainda vai virar loucura! Não é justo entrar na minha vida. Não é certo não deixar saída. Não é, não..."
Mariazinha cantava, quase que profeticamente, que o amor "ainda vai virar loucura"...
Eu, sozinha, sorri profundamente. Na boca e coração. Enquanto ouvia a voz rouca e desafinada de Mariazinha se espalhar pelas salas frias e feias do ambulatório, eu fui feliz. Mariazinha fez felicidade.
* Nome fictício
T. Prates