10 de jan. de 2011 0 Declarações de outras almas

Do descobrimento



e eles se falavam com pudor nas palavras. um pudor de olhar calma e respeitosamente cada mínimo detalhe comunicado, pois sabiam que as pequenas coisas confessadas são sagradas.
e sentiam que ouvir um ao outro tinha sabor de comunhão - um diálogo mudo em que os sentires eram, por si próprios, o transbordamento e o grito do real/aqui/agora.
como se as palavras pudessem, fatais, macular o que ainda sequer tinha nome.

t. prates

"Porque eu só preciso de pés livres,
de mãos dadas
e olhos bem abertos."
[Guimarães Rosa]
5 de jan. de 2011 0 Declarações de outras almas

Da des.repetição



que eu procuro a desrepetição e não quero usar o tique-e-taque do relógio na parede como metáfora do tempo inexorável que passa por mim e que me é (quem é alguma coisa fora do tempo?) para te dizer da pressa voraz que eu tenho da vida ainda que tantas vezes eu conclua que ela é demais (ou de menos?) para mim, que ela chega atroz no meu encalço e roça meus cabelos como vento impetuoso – e eu sei que estou usando metáforas batidas e repetidas, mas – doce ilusão -, como escapar da força que o clichê tem para comunicar? e roça meus cabelos como vento impetuoso e como animal feroz que quer acarinhar e não sabe a medida e acaba ferindo, e a vida se me mostra tão cheia de adjetivos que me escapa a pureza das coisas que simplesmente são e que prescindem de qualidade, como a capacidade didática da dor – mas eu não quero falar da capacidade didática da dor porque pode parecer que eu tomo partido do sofrimento e eu sei (sim, eu sei!) como ser alegre é muito melhor, mas a vida exige muito mais que ser alegre – a alegria pura não é vida, não existe um único exemplar da espécie humana que se saiba só alegre, e fico tentada a te falar do caráter paradoxal da vida, mas isso já é interpretação e eu estou ávida, já disse, pela crueza das coisas, porque nomear já limita, quanto mais caracterizar... e não!, não me peça moderação com esses teus olhos estóicos porque eu já fui morna demais até aqui e sinto que se eu não tocar a vida com urgência tudo vai me escapar, tudo terá sido e será em vão, até a repetição, e eu insisto (confusamente) em te dizer (bis)

t. prates


Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
(...)
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
[Álvaro de Campos,
"Passagem das horas", trecho]


Imagem: Can eat the sun
27 de dez. de 2010 0 Declarações de outras almas

Da imanência


contemplo o céu
com os dedos enfiados na terra
e não há metafísica melhor.


t. prates


"(...)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
(...)"

[Alberto Caeiro/Fernando Pessoa,
em
Há metafísica bastante em não pensar em nada]
16 de dez. de 2010 0 Declarações de outras almas

Do pequeno ensaio sobre a vida neutra



Tenho pressa do tempo que cura. Do tempo que faz a dor virar resquício e alicerce de vida.

Do tempo que cura a vida em mim e lhe devolve seu atributo fundamental - que é o de ser neutra.
A vida em si é de um cinza neutro, maravilhosamente indiferente e impregnado. A vida se dá cinza.
As cores com as quais tento pintá-la são sempre artificiais - o que digo sem intenção pejorativa. Artificiais porque não lhe são intrínsecas, mas sempre dadas de fora, num esforço e exercício contínuos.
E se, com esforço, tento pintar a vida com tons alegres e agradáveis, também o acaso (?) é um grande pintor (sempre mais eficiente que eu?), com preferência (apesar das surpresas) por tons incômodos e austeros.
Mas chego ao que queria dizer: sendo eu ou sendo o acaso, a pintura é externa à vida, que continua redundantemente neutra.
(Não sei se você alcança o que eu quero dizer, nem mesmo se eu alcanço com a expressão a compreensão disso que consigo sentir. Mesmo porque não é sempre que eu consigo sentir, tão empenhada eu fico na coloração da vida - a minha pintura contra a do acaso).
E eu tenho pressa do tempo que escorre as cores que eu não quero, ainda que saiba que as cores que eu quero também vão escorrer.
Sinto que a felicidade - ou o mais perto que disso consigo chegar - está em descobrir esse tom cinza da vida. E felicidade me soa muito colorido: melhor falar em paz.


t. prates



Com efeito, uma única e mesma coisa
pode ser boa e má ao mesmo tempo
e ainda indiferente.
[Spinoza]

Não há fatos,
apenas interpretações.
[Nietzsche]

3 de dez. de 2010 0 Declarações de outras almas

Da poesia encarnada


Imagem daqui modificada por mim.
 
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